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sexta-feira, 21 de setembro de 2012

No osso do recheio das coxinhas de boteco têm lírios - Dante Ramone

No osso do recheio das coxinhas de boteco têm lírios

Que a coxinha da Padaria Real é suprema em termos de sabor, textura e qualidade, todos sabemos. O que não dá para engolir é outra coisa: o fato de chamarem aquilo de coxinha.
Muitos pretenderão, eu sei, me apedrejar em praça pública depois que eu afirmar, sobretudo, que aquilo é plágio!
Falso profeta? Terrorista? Doidivanas? Não. Sou apenas um bêbado que há muito já desconfiava de que Deus andava se aventurando na cozinha, depois que experimentei uma daquelas “maravilhas” da Padaria Real. Ele só pecou no nome, insisto. Por que não chamá-las de “bolinho dos deuses”, “soberano de Sorocaba” ou coisa do tipo? Aquilo é bom demais, e é aí que tudo começa: o recheio fresquinho, a massa que desmancha na boca, o aroma pronunciado... Mas, definitivamente, uma coxinha não é feita tão somente de meros combinados. Grosso modo, a verdadeira coxinha é composta de massa, frango e defeito. Sim, é isso mesmo: defeito. Quem nunca engasgado com osso do recheio da coxinha, não estava decerto comendo uma coxinha autêntica; perfeitamente. E esta semana mesmo, que pensei estar comendo uma coxinha recheada de cenoura, de tanto corante que havia no recheio?! E isso é lindo, simplesmente divino. Sem salientar o que nos diz uma coxinha murcha. A coitadinha talvez tenha ficado horas ali no balcão do boteco, da birosca, só para sanar a sua larica.
Pois bem. Onde a gastronomia diz sobre as imperfeições? Não sei, aprendi isso na Literatura. E mesmo supondo que os escritores portugueses estejam mais perto da padaria, dispenso a piada. A receita vem daqui.
Li, há um tempo atrás, em Lygia Fagundes Telles, o que a minha alma não sabia desenhar. A escritora, em determinada obra, atribui um defeito à personagem, a fim de torná-la mais humana. E se o poeta Manoel de Barros sentisse o cheiro deste texto, certamente mudaria o rumo de um de seus poemas onde um verso diz que “no o osso da fala dos loucos têm lírios”, de modo a escrever que “os lírios estão no osso do recheio das coxinhas.”

É disso que estou falando. Essa é a minha maneira de separar o que é joio do trigo: com um pouco de pedantismo e Literatura. E olhem só, como soa bonito dizer pedantismo...
O leitor deve ter calculado comigo a diferença entre um mero bolinho de qualquer coisa e uma coxinha genuína. Não obstante, se a explicação ainda não foi sucinta, há de se ler muita teoria literária, meu caro. E não é de se espantar que a Ana Maria Braga não tenha nada quer ver com as receitas de coxinhas, como também estudar gastronomia por três ou quatro anos. O grande mistério da vida está em não se vender coxinhas em bibliotecas...

15 de setembro, 2012


Por Dante Ramone.

Um comentário:

Unknown disse...

Amo essa crônica! Meu grande amigo Dante Martela foi muito feliz nesse texto. Já disse isso a ele e repito aqui: Está entre as minhas crônicas favoritas. Obrigado Dante.