Ao se falar em documento histórico, é comum vir à mente imagens de textos antigos e importantes para a História. O problema é que não se questiona quem determinou o que é importante para a História; o que deve ser preservado; quem serão os heróis e vilões...
Em torno desse debate, reproduzo um trecho do livro Documento e história, com o artigo "A memória evanescente", de Leandro Karnal e Flavia Galli Tatsch:
"Discutir o que consideramos um documento histórico é, na verdade,
estabelecer qual a memória que deve ser preservada pela História e qual o estatuto da própria História.
(...) Iniciando pela percepção mais difundida, o documento histórico seria uma folha (ou várias folhas) de papel escrito por alguém importante. Assim, um exemplo clássico dessa concepção de documento seria a carta escrita por Pero Vaz de Caminha e que relata o “descobrimento” do Brasil.
A visão anterior omite a história do documento, ou seja, como determinado grupo e determinada época consideraram que aquela folha estivesse na categoria de um verdadeiro “documento histórico”. Tome-se a mesma Carta de Caminha para exemplificar esse problema. Enviada no navio de mantimentos para Portugal, foi recebida com interesse na corte de D. Manuel, o Venturoso, mas não pelo “achamento” do que viria a ser o Brasil, mas em função das notícias da viagem que estabeleceria o comércio com a Índia. Para o ansioso monarca e seus cortesãos, o objetivo central era a rota para o Oriente. A nudez das mulheres da nova terra pode ter incendiado a pudicícia lusitana, mas o olhar do rei estava além de uma terra de papagaios e ninfas.
Por mais de duzentos anos, o documento que temos na conta de preciosíssima certidão de nascimento do Brasil ficou na Torre do Tombo em Portugal, sem que ninguém tivesse um interesse específico por ele.
(...) Desde o século xx, ela passou a ser republicada constantemente, foi citada em abundância e entrou nos livros didáticos como referência obrigatória. Transformou-se em roteiro para o cinema nacionalista de Humberto Mauro e inspiração de música e dança modernas. Glorificada, retornou ao Brasil em 2000 para a Mostra do Redescobrimento. A Carta de Caminha alcançara o cume da hierarquia documental: estava em vitrine hermética e recebia visitas admiradas da multidão compungida.
(...) Dizendo de modo diferente: o crescimento da importância da Carta de Caminha dependeu do crescimento do Brasil, dependeu do surgimento do nacionalismo brasileiro, dependeu do crescente orgulho português pelo passado épico das navegações e do contexto do Quinto Centenário no ano de 2000. Em suma: o documento não é um documento em si, mas um diálogo claro entre o presente e o documento. Resgatar o passado é transformá-lo pela simples evocação. Em decorrência da ideia anterior, todo documento histórico é uma construção permanente."
E parafraseando George Orwell, em 1984:
"Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado."
"Digo adeus à ilusão mas não ao mundo. Mas não à vida, meu reduto e meu reino. Do salário injusto, da punição injusta, da humilhação, da tortura, do terror, retiramos algo e com ele construímos um artefato um poema uma bandeira." (Ferreira Gullar)
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Um comentário:
"terra de papagaios e ninfas"; não teria melhor definição dessa porcaria de país. ehehehe
nelson.
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